quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Ouvindo vozes


“A nossa memória, retalhos do passado costurado pelo afeto, responde pela saudade. Tal tragédia suspende os remendos da memória. As sapucaias e as cajazeiras são quase imagens que desaparecem. Difícil alcançar sentidos com a armadura da loucura para atravessar o ritual macabro de uma lembrança com o poder de alterar o destino.”


As histórias do hospício e as lendas do encantado são contadas pelo psiquiatra Edmar Oliveira. Ele conta das reformas nos hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro, como Engenho de Dentro e Nise da Silveira. Narra histórias centrando atenções em pessoas, não em diagnósticos. Emociona pela prosa eivada de poesia. Raros são os psiquiatras com tal sensibilidade. Eles, em geral, acreditam mais em medicamentos e tratamentos de choque, enquanto em muitos casos outras químicas, como a do olhar e a da palavra, se fizessem mais eficientes.  



Sempre à espreita nos manicômios, os dragões ora tomam a forma da burocracia ora a do descaso e vão se desdobrando em indiferença, em morte súbita e em suicídio. Sistema desumano, assim como os dragões das lendas do desencanto. Isto sim, coisa de loucos. “Pela manhã (descobri que no hospício praticamente só se morria à noite e silenciosamente) um pacote fúnebre passava pelas alamedas em direção ao necrotério.”



Em meio a histórias reais de gentes até sem nome, mas que depois ganharam inclusive sobrenome, o enlouquecimento no hospício pelo agravamento de casos maltratados, pelo abandono das famílias e do Estado. Funcionários públicos acomodados, preguiçosos, desleixados e até perversos (até hoje) sob a lei ainda dos tempos da ditadura, segundo a qual não podiam ser demitidos, sob pena de o Estado ser acusado de perseguição política.



- Nunca vou esquecer o que me disse um dia Xavier: a internação era pior que a prisão. Na prisão, perdia-se a liberdade, no hospício perdia-se a liberdade e a razão, que é a liberdade da alma. Aqui não era só o corpo, mas a alma também estava aprisionada. O hospício com seu poder de aniquilar corpos e aprisionar as almas vivia dentro daquela gente. Logo descobri que o que produzia os sintomas dos habitantes do manicômio não era a doença, mas o tratamento. Aquilo não pertencia às pessoas, mas o que o hospício chamava de tratamento produzia um efeito colateral muito parecido.
Estes são os “engenhos de dentro”, cujos sintomas aparecem externamente, mas que são forjados pela “engenharia de fora”, a da loucura imposta ou a do diagnóstico piorado pelo tratamento inadequado. O pior sintoma é notado quando a doença se cronifica. Dependendo do grau de esquizofrenia e do seu tratamento, por exemplo, o sujeito pode viver livre e em sociedade, a sua escolha. “A minha cama já virou leito, disseram que perdi a razão”, registra Edmar Oliveira sobre a letra da música “Que loucura”, do compositor e cantor fluminense Sérgio Sampaio para o poeta piauiense Torquato Neto:
Fui internado ontem
Na cabine cento e três
Do hospício do Engenho de Dentro
Só comigo tinham dez

Estou doente do peito
Eu tô doente do coração
A minha cama já virou leito
Disseram que eu perdi a razão
Tô maluco da ideia

Guiando carro na contramão
Saí do palco e fui pra platéia
Saí da sala e fui pro porão     



Enquanto a cama é pessoal e intransferível, o leito é impessoal e só passagem, porque dali se sai ou ali se morre.  A questão de Edmar Oliveira, reiterada ao longo de toda a obra, trata do “como” levar os internados (enterrados) no porão de volta à sala. O maior entrave, denuncia o autor, ainda é o descaso do poder público, a começar pelo péssimo uso das verbas milionárias de que dispõe.  


*"Anotações para o cemitério dos vivos" é um texto inacabo do escritor fluminense Lima Barreto, sobre suas internações para tratamento do alcoolismo em instituições psiquiátricas  - então denominadas manicômios e/ou hospícios. O texto está publicado na segunda parte deste mesmo livro assinado pelo psiquiatra Edmar Oliveira.

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